segunda-feira, 10 de outubro de 2016




Foi a dor de saber que não existias.

(agora que penso: deus confunde-se
com o pueril amor.)

domingo, 9 de outubro de 2016







eu não sei explicar como estranhamente incorro
para interiores de perdição

e não expulso as imagens que me queimam

estou encadeada pelo seu brilho invertido,
opacidade, magnitude


estranhamente me lanço, pairo sobre a sombra
a morte, a decadência, a destruição
até à limpidez dos ossos
e há nada
e descubro que fui nada
e serei nada outra vez
e no espaço entre os nadas só há um nada onde não cabe o medo
um nada que não sei mas sei que não há medo
um nada com a semente espacial da vida

ocupei um nicho, uma linha lançada no infinito
eu irrompi não sei de que raízes, como sol fervendo
e hoje tenho gravado todo o passado humano
nos estremecimentos humanos
no pânico, nas visões quebradas com remates num beco
onde a razão embate e se desmorona

e então só me canta dentro uma voz sem nome
não é música nem palavras, não é voz, é um nada falante
e permanente, intemporal,
coisa que atravessou o universo
comigo sem eu saber
somente reconheço um eco
eu sei que sei
mas não sei saber
eu sei que sei
mas não sei dizer,

(então saberei?
se a candeia acende e se apaga no próprio instante em que se acende?)

e há somente uma nuvem, e esboços de pontes flutuantes
na aleatoriedade de um espaço infindo

veio de dia a resposta a todo o corpo, dissipando-se
mas eu vi na fulguração-apagão de tudo
acho que foi no mar
e numa noite se operou o milagre
e então acordei com a cabeça liberta
e sou meu corpo como minha alma desperta

(mas eu esqueci como viver nessa resposta)

os dias estão estendidos agora só para me ver, despir
camadas e peles que não são minhas

eu não sei se sei mas tenho a certeza
- que eu escolhi ocupar-me, ser-me,
meu outrora nada para luz ser.



MF











Memorandos


6.10.2016

18.57

Eu sei que não me deixaste nas minhas mãos
eu só não vi que as minhas mãos eram as tuas.


7.10.2016

8.33

Debato-me na sombra e mais ainda na luz
não é a primeira vez que vivo nem será,
certamente,
a última.


8.47

Esquece-te abandona-te às palavras.
De que tens medo? Escrutínio do interdito que te aparece vestido em sonhos?
Dissolve-te nas runas, no grande fundo de sempre
e toca as mãos de mil humanos e absolve a solidão do magma

Havia tanto. Há tanto. E tu sabes.


8.40

Eu sonhava com tímpanos furados
e a dor fazia-me crer que o real não era real
e então adormeci.


8.53

Os ciprestes e no seu centro rasgos breves de luz

e a pulsação maior síntona,

e a respiração, a oração sendo.

8.58

A sombra descendo
transmutando-se na própria luz.

13.57

Há palavras com as quais eu choro
Há palavras com as quais eu brinco
Há palavras com as quais eu procuro
 - achar aquilo que nunca perdi e achei perdido.

14.02

Não haviam palavras para dizer -
que eu estava noutro lado
quando o meu corpo estava ali.


sábado, 8 de outubro de 2016




7 de Outubro


Eu tive os meus nervos de súbito envoltos pela possibilidade

Pela imensidão, e não podia acreditar não haver palavras, linguagem material que o falasse, o reunisse , o compreendesse inteligível. Um abismo enorme de luz, uma visão fragmentada feita de mil sentidos amalgamados
Prenúncios, intuição ancestral, abertura, respirar nesse espaço quase sufoca, ver quase cega.
E então fecho os olhos e desço ao mundo dos conceitos,das limitações espaciais e temporais. E há morte aqui, mas é tão concreta, negra, resoluta, que a razão a beija com medo das divagações cósmicas, com medo de não saber tece um saber final, ponto final, como se o céu tivesse final, e a música, e isto de ver, estar aqui quando tudo e resto podia ser paisagem, ilusão.
Só tu sentes que és, profundamente, continuamente, com carne e mais ainda com o espírito. 
Não pude acreditar nos prenúncios que se desenrolavam para lá das palavras escritas, em bifurcações, afluentes indizíveis 

mas o ser soube - que nunca iria saber mas é enorme.
E isso o prende à sua luz.



MF

        to: A e Gamoneda







feriste-me o pulso. eras tu, ele e deus
agora silenciosos como deus

sou só eu
fui sempre só eu

somos sempre só nós connosco a sós
então rogo-me a mim, amo-me a mim.





Chihei Hatakeyama Hakobune - Vibrant Color

Diz-me onde estás e se possível, ( não está em teu poder dizer) 
 - Se é realmente a ti que eu chamo
Estes dias tenho esculpido uma espécie de templo feito de silêncio e céu
Limpei o meu corpo e varri da minha mente a excessiva turbulência que me exilava daqui
Eu pergunto-me se volto de novo a ti porque não tenho deus
E o meu sangue é frágil
Ou está frágil
Eu pergunto-me porque se me assaltam visões proíbidas e se são sinais que podíamos afinal viver
Sem nos matármos

Estes dias pousaram no coração minhas próprias mãos
Pulsava através da pele como uma pássaro aterrado
E então eu vi que era puro
Porque na minha cabeça nasceu
Essa imagem de pássaro

Chorava de não saber o que tinha perdido
E se eras tu quem eu chamava
E o horror que seria se viesses e o vazio não abdicasse do seu trono em mim
E estar vazia contigo seria tão mais vazio que estar só vazia

Hoje o meu sangue é um mar com a memória dormente
Um mar antigo que me ocupa e é ocupado por mim
Eu flutuo nele como no ventre da minha mãe 
Há vinte anos
Não ouvia gritos então. Submersa.
(Não sei quando e onde acordou a vida)

Estou calma como o começo do dia
Manhã límpida, incorruptível
Gelada com o calor simultâneo da Beleza

Gerada de um parto que me deixou prostrada
Muitos dias e muitas noites
Intercaladas com invocações várias
E respirações aliviadas que nunca foram finais
Porque as luas se quebravam então
(Não sei porque engrenagens do coração)

E então fugi e inventei paraísos.

Não me perguntem se quero viver - são tão tácitos os sonhos, as visões, as suspensões que me roubaram cada pergunta sem resposta.

*
(Semi-automática)

Eu afluí no medo e bebi da sombra e da luz. Eu teci contornos indeléveis de promessas dadas ao furor. Eu cantei no magma e nos limites do erro. Eu escalei as estradas que jurei não poder escalar. E no final vi-me eu. No final, vi-me eu. Sem princípio nem final. Aqui. E hoje era uma abertura magna de um universo nascido hoje. Hoje era a oportunidade de nadar entre cada fiapo de luz e amar. Tocar. Adormecer. Escrutinar os sonhos de outra dimensão. Eles falavam em símbolos as respostas que procurava acordada. Eles falavam-me que eu chorava por fazer doer outro corpo que fez doer outro. Eles falavam-me que eu não podia suportar a morte de absolutamente nada às minhas próprias mãos. Por mais impuro que fosse. Por mais humano que fosse, eis a claridade a chegar - Por mais humano que fosse. O cristal, as flores lançadas sobre as lágrimas humanas, fecundam os jardins de deus. Por mais humano que sejas, eu perdoo-te, eu perdoo-me então.

Eu perco-te. E perdes-me o rasto cada vez mais intermitente. Os dias são estranhos.
Sabes–me ainda tocar-me? 
Não me digas o que eu não sei. 
Deixa saber-me. Na luta solitária de uma cavidade densa, eu sei que verei. 

*

Chorarei mais vezes abalada com o meu próprio choro porque eu não chorava, eu não era humana. Ver-me humana. Ver-me humana. “ A coisa mais frágil que conheço”. Não pude sequer despedir-me da máscara. Mas quereria se pudesse? Quando foi tão solidamente máscara. E a pele queimou debaixo dela. E o primeiro suspiro liberto foi um choro. E o corpo não sabia o que fazer dos tremores. O olhar não sabia como se esconder. Era uma vergonha chorar e mais ainda achar que era uma vergonha achar vergonha chorar. Duas vergonhas lado a lado e então escolheu a primeira. E lembrou-se que a vergonha era somente o nome dado pela máscara àquilo que a podia destronar.


*

Suponho que a luz não se tenha dado a mim
Porque eu não podia abandonar de todo a sombra
E na luz não cabe a sombra
Ou não seria luz

Mas na sombra cabe luz,
Em recessos invisíveis
Eu sei que está lá
 Porque volto sem cegar à tona

*

(Defeito essencial)

Dei a minha luz à sombra
e minha sombra à luz
Porque acho que a sombra é também humana.


MF

quarta-feira, 5 de outubro de 2016




Eu vi - a sombra era afinal minha mãe
e as dores de parto sempre antecedem
o milagre de (re) nascer;

Eis que esta dor era bênção
porque me impelia para a luz
e os sonhos e as experiências no mundo
falaram-me - o que eu não era.
e por eliminação de hipóteses talhei
as camadas externas até ao peito,
até mais perto
do núcleo profundo,
imóvel, permanente, de luz

Eu só quis fazer meu próprio templo
(nunca zonas de conforto)
que me bastasse na ausência contínua desse deus
ominipotentemente desaparecido
que invocamos todos
do fundo mais longínquo do silêncio,
turbulência e desamparo

" - Tira-me daqui" , eu disse-Lhe em desespero,
com os músculos ardendo, os pulmões poluídos
o estômago conspurcado
e o coração em espinhos,
" - Tira-me daqui se existes,
ou faz esta noite acabar mais rápido."

E então eu vi - o sentido do seu silêncio e ausência:
ninguém me poderia tirar dali,
ninguém me podia privar da sombra - para poder ser luz.

*

E eu ouvi-me dizer - disciplina-te
para te libertares
que a graça não vem. a graça é.
tens de ser graça
limpa então teu corpo e tua alma.

*

a chuva repartia-se por dentre os ossos
aglomeração de rostos e corpos ébrios

procura de pureza e silêncio
um coração de outra espécie
feito de exaltações silenciosas
euforias lentas ante a Beleza

as pedras também sofriam então
e as cobertas largas da minha inocência
chamavam o teu nome
(pensando que olvidarias o mundo
de cruz e sombra e ruído)

sonhava barcos, paisagens indistintas
um grande salto, grande encontro
de luz e imperturbabilidade humana,

lembrança de Deus inscrita
na minha própria carne.

*

Ser só de mim é tão longe.

*

E no frio da noite atento à
sensação
humana de toque
só o toque me acorda
só o toque me lembra que
o frio não é só da noite

*
Vi as mortes nos meus olhos aguados

eu chorava porque via
a morte nos meus olhos aguados
e estava viva.

*

tenho pesos atrás dos olhos,
prenúncio de sal
se o sal ao menos sanasse,
 - um estremecimento, queimação breve
e por fim a purgação (permanente).

*

não sobra nada a esta hora
de divino.

*

(sonho da estrela do mar)

Dissecava-te em cinco partes e chorava
como se cada corte me doesse também
traçava leve um pentágono
com a navalha
Lancei-te na valeta e olhei para ti -
esperando que sobrevivesses em lágrimas.


*

não sei se o teu abraço está toldado de amor
queria-o despido, nu, não cego mas impelido
para a graça-sombra do meu coração.

esquece o meu corpo.
e o que fizemos com os corpos.

porque eu só quero desaparecer diante ti como mulher
e sobejar somente humana

que clama por um silêncio, ligação à distância

aproximármo-nos desse hiato frio dos interstícios humanos
o mais possível
uma mão, um dedo, uma palavra e já seria muito,

tocando-me além da carne alcançando-me
no meu quarto gelado

nestas catástrofes lentas e aquosas da alma
grávidas de prenúncios densos que nem eu própria sei

(mas são tão reais a esta hora)

só havia céu quando eu era criança?
cheia de sede. era de mais a sede,

(e o coração,
o que se passou com o coração?)

(to p.)

MF





domingo, 2 de outubro de 2016


30 de Setembro


Preciso de saber
podia nunca ter nascido?
(podíamos escolher não voltar a nascer?)

Tu és a coisa em torno da qual te constróis
e então o desapego está
no vislumbre último e
fatal
que te mata -
é quando vês que quem és
não és tu
quem pressentes debaixo da tua pele
quem foge antes da festa começar
quem treme na fonte da lembrança
e então o desapego está
onde te disseram -
tu não és tu.

O núcleo primordial
é tua tábua sensível de criação
confundiste a forma com o núcleo
não te lembras quando voaste?
o teu voo era o voo
de toda a gente que voou
o teu choro de amor foi o choro
de toda a gente que amou
és igual, na tua diferença
és igual, na tua dor mais profunda,
ao lamento do maior homem que viveu.

E vais viver para sempre
até acordares todos os dias.


MF





2.10.2016

 memorando 07:00 - 07:21

qual é o problema?

com a carne
gostaria que não nos tornássemos menos puros,
pela carne
só quis tocar,
(toda a gente que amo e amei)
com a carne
porque é o mais real que conheço
e o que mais pede depois do olhar;
de carne desde que nasci
de carne até morrer
mas falaram-nos
de um certo pecado de ser carne
pecado de tocar 
pecado em todo o lado, 
(posso ao menos respirar? 
ou já pequei com a minha expiração?
porque o ar bateu na carne 
e é um pecado ser de carne e simplesmente querer tocar)
se eu pudesse dizer...
(acho que me interrompi do sono para o poder dizer)
- só é pecado querer ser mais que carne
e não tocar
nem dizer tudo isto que digo e direi
qual é o problema da carne? 
quem disse, ditou, pela primeira vez, a culpa de ser carne?
(e de amar com a carne)


não somos só filhos de nós, imatérias viventes por debaixo do sangue e da pele
somos filhos do sonho e da matéria
e das circunstâncias puras e sinceras,
da carne
circunscritas sem tempo e culpas,
da carne
na pureza de nós só há olvido
de tudo o que nos disseram sobre o baixo da carne
afinal, é o único modo de nos tocármos
e os limites são reflexo
da intensidade da vida acesa em nós
por outra alma
às vezes a serenidade feliz permite um abraço 
(ainda fora do pecado)
mas baniram-se as mãos e os lábios
(porque nos fragmentaram o corpo em zonas de pecado
quando na alma não houve nunca
pecado?)
e nos divido de novo
quando não há uma alma e um corpo
há isto de ser assim -
uma extensão que sonho infinita
que jaz contida
no que chamaram corpo
mas que voa
 e silenciaram-nos o voo no álibi da carne
não sabem eles que voamos? 
não sabem eles que voam? 
(ou nunca se deixaram voar?)

somos outra coisa 
todas as coisas até aqui conjurando-se para a visão e o sentir, 
a primeira inspiração consciente
e podíamos ser outra coisa talvez, à superfície
escolheram-nos a matéria e disseram-nos que éramos sujos
algum homem partido, decerto sozinho,
no mundo
sem o calor de outras mãos e 
somente com pressentimento sensacional de um beijo
e o que seria fundir-se e perder a noção
da sua mortalidade
fizemo-nos de carne talvez
porque o bater do coração através da pele é 
o som mas bonito que conheço
é um som,  é um som, que só pode ser ouvido em ti,
através da carne repercutivo e formado dentro vivo, 
som
nada existe se não te atravessar
é dentro de ti que há som e cheiro e sabor e tacto
(quem nos condenou a tamanho desumano medo de tocar?)
só dentro "é em nós que é tudo"
e se isso te parece triste pensa também
que só dentro de ti está o pecado
que imaginámos todos, num grande delírio colectivo
(a leveza de um mundo sem pensamento era insustentável?)
ou talvez a solidão de um corpo foi quem escreveu pecado,
 - uma palavra para condenar milhões.


MF


  [Serás humano até ao fim] caminhas tocando as paredes numa divisão obscura os caminhos múltiplos, as escolhas pressionadas por um tempo de...