quarta-feira, 23 de março de 2016

Inconsistências

Desvaneço na minha vastidão árida.
Trepaço-me, completamente,
(Qual lâmina afiada)
Com uma palavra vã.

Sinto, devagar, suavemente,
Cada nervo do meu cérebro,
Cada célula do meu corpo,
Cada átomo da minha essência,
Silenciando o seu canto.

Ouço, nos seus cantos mórbidos,
A crença de um mundo melhor,
De algo real.

Mas eu sou as florestas queimadas.
Sou os rios secos.
Sou o paraíso dos mortos.

E na inconsistência da minha alma,
Tudo o que é real
Queima com as florestas,
Seca com os rios,
Sufoca com o mundo.

Sou o produto dos sonhos desfeitos de mil homens.

O vento que me esvoaça o cabelo,
Que me alimenta a fogueira,
Que me embala no sono,
É o mesmo que me abre as cicatrizes.

O vento que me esvoaça o cabelo,
Que me sustenta no ar,
Que me acalma a fúria,
É o mesmo que me condena a cada passo.

Sou guerra e paz, em tudo.

Por isso, meu amor,
Salvaguarda-me a alma.

Não vá eu quebra-la,
Só para não sentir.
Não vá eu pisa-la,
Só para esquecer que existo
Dentro desta máquina oleada de existir.

PN

terça-feira, 22 de março de 2016





Passageiros tempos, desvios, silêncios. Ouves-me a voz no cristal do tempo, somos nós.
Somos nós que nos cantamos para sempre.


quinta-feira, 10 de março de 2016






Diz-me. Relembra-me ( porque hoje me esqueci)
 - Porque importa estar aqui?

A criança
Como poderia eu alguma vez ter sido
Criança
A criança entrava no teu quarto e dizia
“- Amo-te” para te acordar
E tu levantavas o rosto cansado e sorrias
E davas-lhe um beijo
E a criança não se recorda se nesse instante te levantavas por inteiro

Imploro. Não ao teu deus, não
Imploro ao vácuo, ao silêncio, à possibilidade
De novo ao silêncio para que me fale
Sangre e deixe de ser mudo,
Sussurre por dentro em resposta
 - Porque importa estar aqui? 
Diz-me. Relembra-me (porque hoje me esqueci)

A criança, ainda me lembro da criança
Vocês feriam-se com palavras altas, as quais não lembro
E ela dizia baixinho, “ - Não falem alto, que os vizinhos chamam a polícia

E eras quem eu mais amava, as histórias antes de dormir
E agarrar-me ao teu peito como os chimpanzés
E abraçar-te e chorar com medo de morrer, de morreres
(Foi atroz saber que o mundo girava impassível mesmo sem nós)
E na praia, rias, como raramente te via, e abrias os braços
Como os espíritos livres, e sabia que estavas viva
Viva como não estavas nos dias.

E um dia disse a mim mesma que nunca mais me farias chorar
Porque doía de mais não te conseguir acordar
Quando te fechavas no quarto ainda o sol suspenso sob o dia
Mas a nossa casa sempre foi escura, com pouca luz
O corredor até ao teu quarto,
O mais escuro da casa, e eu percorria-o
e não me lembro de haver mais alguém

Sim, há só nós, isto é entre nós, pergunto-me se alguma vez eles souberam
e foi sempre a criança da casa, confusa, que chegava até a ti
e tu sorrias e dizias que também a amavas e acho que perguntavas
como te podia amar, se te deitavas e ainda era dia

Sim, esta é uma imagem que tenho, que repercute ainda em mim
Não há nada a perdoar
Eu sei, que é difícil viver
E ainda tens toda a nostalgia do teu próprio sol
Que só tu vês,
E vejo-te o brilho nos olhos quando falas da cassete que recebeste
E da praia, e de como a vossa história dava um filme
E revejo-me em ti quando me dizes que é tão imenso
O poder de uma canção, que todas as fibras vibram de saudade
E que preferias nunca ter vivido nada daquilo
Porque dói tanto viver depois, o peso dos quadros perfeitos
O peso de um coração um dia tão cheio
E agora não há sangue, e fazes e desfazes malhas e passas toalhas lisas
E aspiras o mesmo chão cem vezes
Para não chorares por dentro.

E junto-me a ti derrotada e pergunto-me
 - Porque importa estar aqui?
Mas não te digo nada disso, digo
Que aqueles dias foram tão poucos porque foram sempre eternos,
(desde o primeiro segundo.)

Não há nada a perdoar, parece que ainda ouço,
O perdão gritante nos teus olhos, naquele quarto,
Para aquela criança, que não sabia porque estavas ali
E naquele mesmo quarto te fechaste
E juro por deus que não te perdoo (daquela vez)
Se foi mesmo a tua intenção
A criança há muito que cresceu, e não cumpriu a si mesma
A promessa de não chorar mais por ti
E na sala chorou, as mãos na cabeça, tu no quarto trancada
E preparei-te comida, e bati à tua porta, e não te reconhecia
Não mais, aquela não era a minha mãe, não eras tu
E obriguei-te a vestir, e liguei ao pai, e ele levou-te
E não sei porque ainda recordo isto
Tiveste saudades nossas lá, e querias voltar para casa
E eu disse que tinha saudades da tua comida
E nunca mais esqueceste
E não me lembro de nada, não me lembro de quase nada
Quando lá cheguei
Apagou-se da minha memória
Apagou-se da minha memória
Quanto mais esqueci? Arrepia-me, o esquecimento
E a nostalgia, e o envelhecimento, herdei isso de ti
Eu sei, não sei se te perdoo isso, mas perdoo
O teu cansaço, o meu,
Porque eu sei o que um dia escrevi
O meu conto do pardal,
Encontrei-o lá, encontrei-te lá, encontrei-me lá,
Aqui mesmo:

Adormeceu, debaixo de uma árvore, quis adormecer como os pardais. Pegaram nela uma, duas vezes. Recusou-se a comer. Recusou-se a acordar, e dessa vez percebeu que era maior a dor de morrer nas mãos do amor, do que a dor de ver morrer o amor nas suas próprias mãos. E em silêncio, perdoou o pardal...



MF



quarta-feira, 9 de março de 2016




olha, isto um dia acaba
- o que?
a vida

e a menina deitou-se no chão do quarto
e debateu-se na incompreensão
e negou, negou, e esqueceu, fechou, abriu
está aberto, e o vácuo é igualmente profundo
e vazio, e o mundo gira na ausência de ti.




MF








(Hoje,)

sobreviver-me, pejar-me de vida, talvez morresse,
se eu tivesse a vida em mim, talvez morresse.


MF




[Alguém.
(Pressente-nos.)]


Não sabes.
que por detrás de mim e da pedra
possuo a sensibilidade e empresa das aves
e experimento o beijo do ar parada e em voo
e sinto toda a pulsação rítmica do Universo
numa efervescência contida

tacteio levemente por dentre a Beleza, o subtil, a calma
e adormeço e sorrio às vezes nas planícies de Deus,

Sozinha.

quero que adormeçam lá comigo um dia e para sempre
quem chore porque foi tão belo
quem chore porque foi tão sem tempo
quem bana as palavras do espaço entre um nós 
e no silêncio ame antes mesmo de nos tocármos.


MF







Beberam do sol
E tomaram raízes profundas às portas da descrença
Bebemos do sol
E ficámos lá para sempre

Sim, estas visões,
Beberam do sol
E infiltraram na terra acre raízes
Inseguras, raízes, da matéria e persistência do sonho
Dissolvem-se e arrepiam-me de novo
Quando o sol daqui me lembra do outro

(Oh... propagar-se a luz desde ontem até aqui)

É um ínfimo salto tenebroso, a lucidez agora
É a falsa transparência de um véu que me separa
De um simultâneo irrevogável abismo
Tempo? Não é o Tempo
É o próprio sangue
Que se passou com o sangue? 
(que se passou ali, que não se passa agora aqui?)
As farpas, as farpas no cérebro
O barrar do desimpedido caminho até ao coração,
As visões que não foram mais que visões

Sangue, abismo, sangue

 (As visões de sol, assombram-me.)

E eu nasci para poder morrer, eu sei
“A brisa, é desta vez que vivemos”
(Para podermos morrer?)
É tão quase que vivemos, sempre tão quase
(podíamos realmente viver?)

Como se puderam esquecer da permanência
Dentro da impermanência?

Todo o sentido tangente
A um momento

Lembraste? De como não sabia ser criança
Nem humana, nem mulher
Apenas dentro, era tudo isso condensado noutra coisa
Que me fazia chorar
Até que fui criança e humana e mulher à luz do mundo,
dos bastidores velados e acesos do mundo

É solidão.
Porque ninguém mais viu além de nós
Exteriorização do vasto, nunca nos vemos mas sabemos
quando fomos
É solidão.
Porque ninguém mais viu além de nós
A suspensão
A suspensão
Estávamos tanto, cruamente, aqui

Lembraste? A cidade descoberta, a cidade cheia de rostos
Amigos e amantes, e cruzes, e tochas
E risos, e luzes, e som, e caos, e ébria vida

Fiz algo belo depois para te mostrar aquilo que senti
( e nunca sabem o que se fez na solidão)

Como podem vocês submergir o autêntico, finito, louco erro
Paixão, amor, às vezes nada mas supersónica pulsação
(e não faz mal, não faz mal…)

A minha memória tem o tacto hipersensível da voragem
E a dimensão circular de um mar
E chamo-vos a todos, porque estão todos ali,
Naquele lugar,
Circunscrito
Humano
Sinestésico
Sem idade,
Sem idade,
Foi. Para sempre.


(Hoje tateio sede, tateio saudade, tateio a vida que fugiu e ainda me tem
Adormecida.)


MF


A ouvir, Ex confusion - Be still 
https://www.youtube.com/watch?v=8ZZa10s5SSw





  [Serás humano até ao fim] caminhas tocando as paredes numa divisão obscura os caminhos múltiplos, as escolhas pressionadas por um tempo de...